sábado, janeiro 23, 2016

Balanço do ano que findou e desafios para 2016 no e-Government em Portugal

O ano que findou foi marcado pela continuidade das políticas restritivas derivadas do ajustamento financeiro a que o XIX governo esteve sujeito. As TIC no sector público, para além de não fugirem a este constrangimento, foram alvo de uma surpreendente desvalorização  política, como se fossem a principal causa do deficit público. Através do PGETIC, foi dada prioridade à dimensão infraestrutural, passando as TIC no sector público a serem encaradas sobretudo como um centro de despesa e não como um instrumento de transformação, de inovação e de melhoria dos serviços públicos.

Apesar desta mensagem negativa sobre o papel das TIC, destaco como positivos no âmbito da atuação do PGETIC, os esforços de racionalização dos vários centros de dados e das redes de comunicações. No entanto faltaram políticas mobilizadoras para a aceleração e desmaterialização de processos interdepartamentais orientados aos eventos de vida dos cidadãos e agentes económicos. Continua a faltar uma perspetiva holística e uma visão de longo prazo nas estratégias de e-government.

Apesar da concentração de poder normativo e financeiro (como o SAMA e a medida 6 do PGETIC), faltou uma governance efetiva por parte das entidades coordenadoras centrais (AMA e ESPAP), onde se continuam a confundir missões de regulação e mobilização interdepartamental com tarefas de prestação de serviços e disponibilização de infraestruturas comuns como as lojas e os espaços do cidadão, a plataforma de interoperabilidade, o cartão do cidadão ou os serviços partilhados nas áreas de administração de recursos (ERP), onde a credibilidade se perde na concorrência com os restantes organismos públicos.

Continua-se a ter muito poder, mas pouca autoridade, cumplicidade e credibilidade junto dos organismos públicos, sobretudo junto dos sistemas mais relevantes, como os impostos, a justiça, a segurança social e a saúde. Faltam principalmente redes de afeto e confiança mútua, como já tivemos no passado.

No final de 2015 destaco como muito positivas as seguintes três iniciativas: (1) O Portal da Saúde e a prescrição eletrónica, pelo grau de integração e serviços disponibilizados; (2) O BIORC (Business Intelligence do Orçamento), porque finalmente se dispõe de informação global sobre os recursos financeiros em todos os setores  estatais, apesar de ainda faltar a necessária transparência para a sociedade; (3) A generalização da fatura eletrónica para efeitos fiscais, que colocou Portugal no topo das administrações tributárias e abre novos desafios para o big data e aos seus impactes na privacidade. Também saliento pela negativa o caos a que se chegou no sistema judiciário, protagonizado pelo CITIUS.

O anterior executivo ficará na história da modernização administrativa particularmente por ter aberto um novo canal de acesso universal a serviços públicos eletrónicos, baseado nos “Espaços do Cidadão”, recorrendo a mediadores de cidadania que contribuem, de forma inovadora e com poucos recursos, para a redução da exclusão digital e para uma maior e mais massificada utilização dos serviços de e-government no nosso país. Também dou o meu aplauso ao anterior governo por ter prosseguido sem complexos com as iniciativas do Licenciamento Zero e do Licenciamento Industrial (oriundos do SIMPLEX), contribuindo para o aumento da transparência e do rigor na tomada de decisão administrativa e para a diminuição dos riscos de corrupção.

Mas o que falta fazer por parte deste novo governo, que reforçou o poder desta área ao colocar a modernização administrativa no segundo lugar da hierarquia do estado, como nunca aconteceu na história do país?

O início da legislatura é o momento mais adequado para lançar as iniciativas mais estruturantes e de longo prazo. É por isso urgente e prioritário dar início a uma efetiva arquitetura informacional do estado, capaz de viabilizar a estratégia do “once only”, já aprovada na legislação portuguesa e em mais de dois terços dos países europeus, conduzindo à criação e gestão dos principais curadores de dados partilháveis e dos respetivos repositórios em torno das pessoas, empresas, território, veículos, etc.

Destaco a urgência da criação do cadastro multifuncional do estado, que tem sido, desde há muitos anos, uma das grandes causas da APDSI junto das instituições que deveriam partilhar responsabilidades em torno das várias dimensões relacionadas com o território. Continua ainda a faltar um grito mobilizador para a criação de “um Portugal para todos!”.

Recentrar o e-government em torno do cidadão e não apenas no protagonismo de cada ministério, deve ser também uma prioridade para o novo governo, colocando em evidência os vários públicos (idosos, crianças, migrantes, deficientes, pobres, etc.) e os respetivos eventos de vida, mobilizando através disso, a vontade de colaboração e partilha de recursos e dados entre todos os organismos envolvidos na tão desejada interoperabilidade tecnológica, semântica e principalmente organizacional. Para além dos novos sistemas, é também urgente dar sequência e desbloquear alguns projetos interrompidos ou subaproveitados, como o “Nascer Cidadão”, o “SICO” (controlo de óbitos) e o IES (informação empresarial).

Em relação às questões da segurança, tão debatidas em 2015 a propósito das “listas VIP”, esperamos que não se confunda cibersegurança com ciberdefesa, ciberguerra ou "inteligência", pois a administração pública e a sociedade civil precisam estar emancipadas destes propósitos mais ou menos secretistas e ter instrumentos efetivos de ajuda à continuidade dos serviços públicos, reforçando a confiança, a privacidade e a transparência na relação entre o estado e a sociedade.

Na maioria dos sistemas interdepartamentais de e-government verifica-se ainda, uma tendência para a apropriação do protagonismo por parte das entidades promotoras, nem sempre acompanhada por uma coordenação política neutral e transversal, capaz de garantir a globalidade e a sustentabilidade dos sistemas, acabando por se afastar do foco nos respetivos eventos de vida dos cidadãos e agentes económicos. A ausência de coordenação global tem conduzido os sistemas do estado a um afastamento centrífugo e à concorrência entre os organismos envolvidos, perdendo a mutualidade, a confiança e a visão interdepartamental, ao mesmo tempo que reforça as autonomias e a defesa dos territórios institucionais.

Por último, deixo aqui cinco recomendações finais para 2016: (1) A regulação dos serviços TIC não pode estar contaminada pela execução; (2) São necessárias soluções mais federadas e interoperáveis do que centralizadas e impositivas; (3) O estado não deve substituir-se ao mercado nem concorrer com ele no fornecimento de serviços TIC; (4) O processo legislativo deverá ter em consideração cada vez mais as potencialidades das TIC, de modo a reduzir efetivamente os comprovantes e os procedimentos inúteis, numa nova lógica decorrente da sociedade digital; (5) Mais do que invocar o poder da coordenação, é necessário adotar uma atitude genuína de serviço público e atuar com credibilidade e redes de afeto, conquistando desse modo a autoridade e a confiança mútua, que são indispensáveis ao sucesso do e-government em todo o sistema de informação do estado.