domingo, janeiro 23, 2011

As Eleições Presidenciais, o Cartão do Cidadão e o Número Único

Mais uma vez se verificou a ausência da tão desejada convergência estratégica em torno das necessidades do cidadão, pois assistimos hoje a um deplorável exemplo de descoordenação no suporte tecnológico a um dos eventos de vida mais importantes no exercício da cidadania.

As pessoas que têm o Cartão do Cidadão acreditavam que tinham um documento que os identificava perante todos os actos da sua vida cívica e administrativa, mas isso não aconteceu hoje.

Paradoxalmente, se por um lado estamos a criar condições tecnológicas para desobstruir e acelerar processos (cartão do cidadão, plataforma de serviços comuns, etc.), estamos ao mesmo tempo a criar um clima crispado de competição entre serviços, entre a administração directa e indirecta do Estado, entre níveis de governo, etc., que em nada facilitam a verdadeira transformação do funcionamento dos serviços públicos e a sua orientação para o cidadão.

Gastámos dinheiro em infra-estruturas mas não as estamos a saber utilizar. E acima de tudo estamos na prática a promover atitudes e valores de competição, muito distantes da mobilização que seria necessária para a reorientação do funcionamento do Estado para os processos básicos dirigidos aos eventos de vida dos cidadãos e das empresas, como é o caso do acto eleitoral.

Neste acto eleitoral as pessoas foram surpreendidas por uma nova identificação para efeitos eleitorais e o velhinho Bilhete de Identidade ou o novo Cartão do Cidadão não foram suficientes para identificar o eleitor. Fazem-se campanhas publicitárias para tudo, mas não se avisaram as pessoas sobre esta mudança de identificação e de locais de voto.

O Cartão do Cidadão parecia que tinha eliminado o Cartão de Eleitor e que iríamos assistir a uma ubiquidade no direito de voto, uma vez que se trataria de uma simples mudança de estado no registo único do cidadão, permitindo-lhe votar em qualquer mesa de voto e, através do uso do certificado digital, poderia até votar a partir de casa ou num piquenique na Serrada Malcata a partir de um tablet. A situação foi verdadeiramente surreal e demonstrativa da actual falta de governance dos sistemas e tecnologias da informação da administração pública portuguesa.

A situação já era grave quando estávamos a assistir ao lançamento prematuro de tecnologias e só depois ir à procura dos problemas, mas neste caso é a tecnologia a criar problemas novos que resultam de erros graves de concepção e implementação. É o deslumbre tecnológico e político a cegar a visão sistémica dos problemas reais do país.

Porque é que o número do Bilhete de Identidade não pode ser uma chave identificadora para a capacidade eleitoral? Será porque mais uma vez não queremos abrir a Caixa de Pandora e reconhecer que o BI não é unívoco e porque existem profundas deficiências na identificação civil no nosso país?

Numa situação de transição de identidades e de acordo com um plano de contingência que a situação exigiria, o mínimo que se deveria ter feito era a disponibilização de listagens ordenadas por nº de BI e por Nº de eleitor.

Poderei dizer com alguma ironia que, se os principais sistemas do Estado estão em risco e sem planos de contingência e de continuidade de serviços (ISO/IEC 27001), porque é que este seria excepção?

A maioria dos processos da administração pública actual foram concebidos para a era do papel, desconfiando das pessoas e da própria informação detida pelo Estado, transformando os cidadãos em “paquetes” destinados a recolher e entregar certidões e comprovantes que não fazem mais do que alimentar sistemas redundantes, desconexos e inconsistentes entre si.

A revolução digital nos serviços públicos exige mais inovação, novos paradigmas e novos relacionamentos entre as várias estruturas do Estado, por forma a orientar o seu funcionamento para as grandes prioridades da sociedade.

É cada vez mais um imperativo nacional, generalizar a utilização de repositórios comuns relativos a pessoas, empresas, veículos e território, sincronizando os respectivos ciclos de vida e acabando com a redundância e a incoerência de ficheiros sobre as mesmas entidades informacionais.

No caso da identificação do cidadão, mantem-se uma multiplicidade de identidades incoerentes entre si, tentando ultrapassar constrangimentos do Artigo 35º da Constituição.

Sabe-se hoje que uma das maiores causas de fraude está na multiplicidade de identidades com que nos autenticamos perante o sistema Estado, parecendo ricos ou pobres, criminosos ou inocentes, devedores ou credores, vivos ou mortos, consoante as circunstâncias e as conveniências de cada um. A confusão e a irracionalidade dos processos estatais sempre alimentaram profissões e negócios privados, sem acrescentar qualquer valor ao país, mas actualmente não há desculpa para não termos sistemas mais simples, auditáveis, eficazes e seguros para os cidadãos e para a administração pública.

O Artigo 35º da Constituição da República Portuguesa, sobre a “Utilização da Informática”, visa e bem acautelar o acesso aos dados pessoais, protegendo a utilização indevida de informação referente a convicções políticas, partidárias, sindicais, religiosas, etc. e a dados sobre vida privada e origem étnica, etc.

Este Artigo inclui no seu nº 5 a proibição explícita de atribuição de um número nacional único aos cidadãos, o que nos dias de hoje nos parece totalmente absurdo, quando no mundo digital e na economia real estamos identificados com mais precisão do que nos sistemas do Estado.

Na prática parece que é só o Estado que está proibido de usar identidades únicas e o Cartão do Cidadão não passa de mais uma hipocrisia para iludir a proibição do número único, acabando por federar identidades múltiplas para permitir a desobstrução de processos.

Tendo em atenção a evolução dos sistemas de informação e as necessidades processuais e securitárias no mundo de hoje, a proibição do Número Único, prevista no número 5, deverá ser retirada da Constituição, mantendo-se os restantes números do Artigo 35º, sobre a protecção dos dados pessoais informatizados.